Interpretação do Doppler Obstétrico na avaliação da vitalidade fetal
O doppler obstétrico é um dos recursos disponíveis para a avaliação da vitalidade fetal em gestações com risco de insuficiência placentária. Os outros métodos são o controle da movimentação fetal (mobilograma), a cardiotocografia e o perfil biofísico fetal.
Atualmente a tecnologia Doppler está disponível na maioria dos equipamentos de ultrassonografia. Através desse recurso é possível detectar e quantificar a resistência ao fluxo sanguíneos em diferentes vasos fetais. Alterações da circulação útero-placentária e algumas das suas repercussões na hemodinâmica fetal podem ser diagnosticadas pela diminuição ou pelo aumento da resistência ao fluxo sanguíneo em determinados vasos, sendo os mais frequentemente estudados: a artéria umbilical, a artéria cerebral média e o ducto venoso.
ARTÉRIA UMBILICAL
O Doppler colorido é utilizado para localizar adequadamente o vaso a ser examinado. Na figura são identificadas as duas artérias (em vermelho) e a veia (azul) umbilical.
A resistência ao fluxo sanguíneo nas artérias umbilicais depende diretamente das condições da circulação útero-placentária. Alterações no desenvolvimento ou do funcionamento dos espaços intervilosos podem em algumas situações provocar alterações no fluxo das artériais umbilicais, onde a resistência ao fluxo sanguíneo torna-se aumentada.
Depois de identificado o vaso a ser estudado, utiliza-se o Doppler espectral para traçar um gráfico que relaciona a velocidade das hemácias em função do tempo, através do qual são calculados diferentes índices. O índice com melhor desempenho na avaliação da vitalidade fetal é o índice de pulsatilidade (IP), na figura representado como “Umb-PI”.
Os valores de referência do IP variam conforme a idade gestacional.
Valores de corte para o índice de pulsatilidade (IP) na artéria umbilical em função da idade gestacional – percentis 50% (verde), 95% (roxo) e 97% (vermelho). Para ilustração foram plotados 3 valores de IP obtidos em 3 exames consecutivos de um mesmo feto, realizado às 28 semanas + 2 dias (ponto verde), 30 semanas + 1 dia (ponto amarelo) e 32 semanas + 1 dia (ponto vermelho). No primeiro exame a resistência na artéria umbilical, avaliada pelo IP, estava normal. No segundo exame o IP aumentou consideravelmente, com valor limítrofe (percentil 95%). Duas semanas depois o IP foi diagnosticado como anormal.
Doppler pulsado alterado na artéria umbilical. Representadas em amarelo a diástole reduzida. IP =1.6 (aumentado para a idade gestacional de 28 semanas)
Com a evolução da insuficiência útero-placentária o aumento da resistência ao fluxo sanguíneo na artéria umbilical impede o fluxo sanguíneo durante a diástole (diástole zero).
As setas em amarelo se referem aos pontos do espectro em que não é detectado fluxo diastólico na artéria umbilical – sinal de insuficiência útero-placentária.
O último estágio do aumento da resistência na artéria umbilical identificado pelo Doppler é a inversão do fluxo sanguíneo durante a diástole: a diástole reversa.
Diástole reversa na artéria umbilical representada em vermelho
Na avaliação Dopplervelocimétrica da artéria umbilical, o índice de pulsatilidade (IP) tem estrita relação com o pleno funcionamento da placenta, refletindo a proporção de vilosidades coriais que desempenham corretamente as suas funções de trocas gasosas entre mãe e feto:
- Nas situações em que o IP se encontra abaixo do percentil 95% para a idade gestacional (IG), tem-se que entre 75-100% das vilosidades funcionam adequadamente.
- Acima do percentil 95%, essa proporção cai para 50-75% das vilosidades
- Nos casos de diástole zero, apenas 25-50% das vilosidades realizam as trocas corretamente, implicando em falência placentária grave.
- Já quando se tem a diástole reversa, essa proporção é de menos de 25%, o que está relacionado com elevada incidência de acidemia fetal e morbidade neonatal.
ARTÉRIA CEREBRAL MÉDIA
A resposta fetal diante da hipóxia crônica provocada pela insuficiência placentária é avaliada pelo estudo do Doppler da artéria cerebral média. Devido à redistribuição do fluxo sanguíneo fetal no estado de hipóxia, há uma priorização de fluxo a determinados órgãos e sistemas, como as adrenais, o miocárdio e o cérebro, o que caracteriza a centralização fetal. Mensura-se esse estado de centralização através do estudo da artéria cerebral média, que demonstrará um aumento do fluxo diastólico e uma diminuição da resistência em sua circulação. Assim, valores de IP abaixo do percentil 5 para a idade gestacional são considerados anormais.
A artéria cerebral média (ACM), devido ao seu trajeto e topografia, é a artéria do sistema nervoso central melhor acessível ao Doppler. Artéria cerebral média (seta azul), adjacente ao Polígono de Willis
Valores de corte para o índice de pulsatilidade (IP) na ACM em função da idade gestacional – percentis 50% (verde), 95% (roxo) e 97% (vermelho). Para ilustração foram plotados 3 valores de IP obtidos em 3 exames consecutivos de um mesmo feto, realizado às 28 semanas + 2 dias (ponto verde), 30 semanas + 1 dia (ponto amarelo) e 32 semanas + 1 dia (ponto vermelho). No primeiro exame a resistência na ACM, avaliada pelo IP, estava normal. No segundo exame o IP diminuiu consideravelmente. Duas semanas depois o IP foi diagnosticado como anormal.
Doppler normal na ACM. Notar a presença de fluxo diastólico mínimo (realces em verdes).
DUCTO VENOSO
O ducto venoso é um curto trajeto vascular, com apenas alguns milímetros. Durante a vida fetal, ele desvia o sangue da veia porta esquerda para a veia cava inferior. Essa comunicação é necessária durante a vida fetal para que o sangue oxigenado originário da placenta, que chega ao feto pela veia umbilical, não passe pelo sistema porta ante de chegar ao coração. Após o nascimento o ducto venoso é obliterado e dá origem ao ligamento venoso.
Persistindo o insulto placentário com consequente hipóxia fetal, após as alterações de fluxo da artéria umbilical e da ACM, a manutenção da vasoconstrição periférica termina implicando em um aumento da pressão das câmaras cardíacas, e, por conseguinte, em alterações no território venoso fetal. O aumento da pressão cardíaca no ventrículo direito acarreta em um fluxo retrógrado na veia cava inferior durante a contração atrial, o que provoca uma redução no fluxo sanguíneo no ducto venoso. Dessa maneira, o estudo Doppler deste vaso exibe um aumento dos valores de IP nessa situação. Com a evolução do quadro, a onda “A” (que se refere à sístole atrial) se mostra ausente ou reversa. Assim, o ducto venoso é considerado um importante parâmetro hemodinâmico preditor de morbidade e mortalidade neonatal, uma vez que, quanto maior seu IP, menor é o pH ao nascimento, correlacionando-se fortemente com eventos neonatais adversos.
Valores de corte para o índice de pulsatilidade (IP) no ducto venoso em função da idade gestacional – percentis 50% (verde) e 97% (vermelho).
O ducto venoso apresenta um aspecto característico ao Doppler espectral, com dois picos e um vale. O vale é chamado de “onda a” e representa a contração atrial fetal.
A redução, a ausência e a inversão do fluxo nesse ponto são relacionados à hipóxia fetal.
Doppler normal no ducto venoso. Notar a presença de fluxo abundante (realces em verdes) no momento da contração atrial fetal (“onda A”).
Doppler alterado no ducto venoso. Notar a ausência de fluxo (setas amarelas) no momento da contração atrial fetal (“onda A”).
Doppler alterado no ducto venoso. Notar o fluxo reverso (realce em vermelho) no momento da contração atrial fetal (“onda A”).
Na presença de aumento da resistência da artéria umbilical isoladamente, a vitalidade fetal deve ser reavaliada em uma semana. Se houver centralização fetal, a vigilância deve ser mais intensiva, a cada 72 horas. Nos casos de diástole zero ou reversa, a vigilância passa a ser diária. O parto pode ser já indicado se a IG for maior que 34 semanas nos casos de diástole zero ou 32 semanas no caso de diástole reversa. Se houver aumento da resistência no ducto venoso, a acidemia fetal é bastante provável; assim, nas gestações com menos de 32 semanas, recomenda-se a corticoterapia ante-natal e uma vigilância individualizada (de diária a até três vezes ao dia), com parto logo que completada a maturação pulmonar, ou se a IG já for maior que 32 semanas. Havendo o diagnóstico de onda “A” ausente ou reversa no ducto venoso, já se tem instalado um estado de descompensação fetal, com óbito iminente; portanto, o parto é indicado imediatamente.
RCP = Relação cérebro-placentária VU= veia umbilical DV = ducto venoso
Cabe ressaltar que, nos casos de restrição de crescimento fetal tardia (após as 32 semanas), o fluxo de alterações dos parâmetros Doppler pode não ser tão linear como descrito anteriormente. Nessas situações, pode haver alteração no estudo Doppler da ACM antes mesmo da artéria umbilical. Além disso, alterações na relação cérebro-placentária (IP da ACM / IP da artéria umbilical), com valores abaixo do percentil 5, podem aparecer precocemente, mostrando-se como um parâmetro mais sensível para a detecção da restrição de crescimento tardia.
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